Decisão inédita do Supremo espanhol
Por Ana Gerschenfeld
Um menino espanhol com síndrome de Down vai receber uma pensão vitalícia. Tudo porque os médicos que acompanharam a gravidez da sua mãe não detectaram a doença, negando-lhe assim o direito a optar pelo aborto.
Há crianças que nascem por acidente, por acaso. Algumas, apesar de o seu nascimento não ter sido planeado, são crianças desejadas pelos seus pais. Outras não. Mas será que alguém pode nascer indevidamente aos olhos da lei? E, nesse caso, se o nascimento for devido a um erro de outrem, terão os pais da criança o direito a ser indenizados? Na Espanha, a resposta encontrada foi claramente sim: o Supremo Tribunal daquele país condenou há umas semanas uma administração regional de saúde e uma universidade a pagarem 1500 euros por mês a uma criança que, na sequência de um erro de diagnóstico pré-natal, nasceu com síndrome de Down. A questão é que a criança poderia não ter nascido se os pais tivessem sido devidamente informados e tivessem optado por interromper a gravidez. As instituições terão ainda de pagar 75 mil euros a cada um dos pais da criança.
Tudo começou a 15 de Dezembro de 2003, como se pode ler no acórdão do Supremo, publicado a 16 de Junho passado, quando a futura mãe, na altura com 39 anos, decidiu submeter-se, através dos serviços de saúde da Comunidade de Valência, a uma amniocentese - para despistar, nomeadamente, uma eventual síndrome de Down no feto.
A análise do líquido amniótico foi realizada num laboratório da Universidade Miguel Hernández, na cidade de Elche, e o resultado considerado normal. Mas quando José Pedro nasceu, a 16 de Maio de 2004, tinha síndrome de Down. Saber-se-ia a seguir que, "ao que parece", a anomalia cromossómica não fora detectada devido a uma troca de amostras no laboratório.
Direito negado
Pode-se perguntar como é que os pais do menino conseguem conciliar o seu amor pelo seu filho - entrevistados esta semana pelo diário espanhol El País (que qualificou a sentença do Supremo como "pioneira em Espanha"), declararam que gostam dele "do fundo da alma" e que ele é "o que há de mais importante" nas suas vidas - com o fato de invocarem perante um tribunal a violação do direito da mãe a impedir que ele nascesse, mas esses são os fatos, por contraditórios que possam parecer.
Por outro lado, a atitude dos pais pode ser vista sob outro ângulo mais pragmático: o seu objectivo pode ser, acima de tudo, garantir o maior bem-estar possível ao seu filho, agora e no futuro. De fato, os custos envolvidos no tratamento e na educação de uma pessoa trissómica podem ser muito elevados. "O mais importante", disse a mãe ao diário espanhol, "é que ele vai ter uma mensalidade garantida durante toda a vida - e isso dá-me sossego."
As implicações morais e éticas deste dilema são fáceis de imaginar - como as do aborto dito terapêutico. Mas nem todas têm resposta.
Seja como for, em termos legais, a queixa dos pais tem razão de ser à luz das diversas leis sobre o aborto em vigor em Espanha e noutros países. Resumidamente, na medida em que uma mãe tem o direito de abortar em caso de malformações graves do feto, pode-se alegar que, no caso presente, esse direito lhe foi negado. Do lado oposto, porém, pode-se argumentar que a medicina não é uma ciência exata - e que o diagnóstico pré-natal nunca é 100 por cento seguro. E também é razoável dizer que os médicos não foram responsáveis pela doença do feto - e que, nesse sentido, não houve intenção de provocar um dano.
Um caso em Portugal
Casos como este não são inéditos: nos EUA, na Grã-Bretanha, em França, na Holanda, Itália, Alemanha - e em Portugal - têm sido apresentadas, ao longo dos anos, queixas em tribunal com o objetivo de se obter reparação por erros médicos deste tipo. Mas nem os especialistas de direito nem os tribunais têm sido unânimes e os diversos processos têm tido desfechos diversos.
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