
No último dia 14, o Espaço Vital publicou o tocante artigo de uma advogada cega do Rio de Janeiro, vítima de discriminação por ter tido proibida a sua entrada no Foro Central da capital fluminense com o seu cão-guia.
A advogada Deborah Prates contou que já frequentava o local há mais de anos, com Jimmy, seu escudeiro, quando, abruptamente, uma portaria revogou todos os diplomas legais acerca do uso do cão-guia pelos deficientes visuais.
Ela conta ter promovido uma ação contra o Estado do Rio de Janeiro e ter se chocado com o que reputa ser uma insensível tese de defesa: "usar óculos escuros, bengala numa mão e cão disfarçado de guia na outra e adentrar pelo mesmo espaço para fazer mal à sociedade".
Depois de receber vários contatos de pessoas que lhe ofereceram solidariedade, Deborah revelou ao Espaço Vital uma emocionante história de vida, contando como a vida dos deficientes visuais é difícil, mas expressando enorme força de vontade e poder de superação das adversidades.
Curioso sobre como é a vida de uma advogada cega, o Espaço Vital ouviu Deborah na entrevista que segue.
Espaço Vital: Como a senhora ficou cega?
Deborah: Ceguei em cerca de 15 dias após ter que ingerir corticoides para a cura de uma sequela de pneumonia. Essa droga fez subir, ainda mais, a pressão intraocular, valendo dizer o final da linha da visão rumo à cegueira.
EV: Qual foi a reação da senhora nos primeiro momentos desse problema tão grave?
D: Não tive tempo para depressão porque tinha muito a fazer para encarar a nova realidade em diminuto espaço de tempo até o recomeço das aulas da minha filhota de, à época, apenas 12 anos.
EV: Para muitos advogados, seria impensável prosseguir na profissão sem poder enxergar. O que a senhora fez para poder continuar advogando?
D: Ainda no período que denominei de "o apagar das luzes", tratei logo de ir me apresentando a essa engenhoca de nome "computador". Tinha a consciência de que a tecnologia era a munição para a guerra em todos os sentidos. Nem ligar a máquina eu sabia. Isso porque meu escritório era bem razoável em clientes e número de ações o que me dava um bom retorno financeiro para custear uma boa equipe de trabalho que, por sua vez, absorvia o item digitação e consultas em saites necessários ao desempenho das funções de advogado.
EV: Existe algum programa de computador que ajuda pessoas com deficiência visual a continuar trabalhando com textos?
D: Baixamos um sistema de nome "Dosvox", brasileiríssimo e gratuito, desenvolvido pelo Núcleo de Computação eletrônica da "UFRJ". Funciona com leitor de telas, pelo que conforme o usuário vai teclando e o leitor vai lhe informando em bom som o que está aparecendo no monitor. Em uma semana, já estava tirando as minhas primeiras petições com impressão e tudo. Depois, com maior esforço, fui melhorando principalmente na edição de textos, já que tinha que manter a qualidade de antes. Introduzi outros leitores de tela com distintas características e novos programas de adaptação. Por exemplo, aprendi um programa de escaneamento de documentos, o que me deu maior independência, visto que já reproduz em - "txt" - texto e não em imagem como nos tradicionais.
EV: Houve alguma perda de clientela após a cegueira?
D: Sim. Hoje, só trabalho em ações das quais sou autora, uma vez que todas as que patrocinava antes da cegueira deixaram de existir. Normal. Cruel! Sim. Contudo, dentro do previsível. É que os "iguais" tendem a pensar que a supressão de um sentido, por exemplo, significa a perda da capacidade intelectual. Tive uma triste experiência com meus vizinhos, que disseram: "A Dra. Deborah é advogada competente, mas é cega. Tem que sair das ações do condomínio e do conselho consultivo." Desnecessários maiores comentários, já que o clima de preconceito e discriminação é cristalino.
EV: Conte-nos da importância do cão-guia para a senhora.
D: Vi que a bengala é uma ferramenta de locomoção que não se deu com a minha personalidade. Era tão cega quanto eu! Decidi que um olho quadrúpede seria a solução. Parti para a busca de Jimmy, meu cão-guia, em Nova Iorque, e o trouxe depois de um curso de 30 dias e sem falar o inglês. Eis a prova de que quando sabemos querer não existem barreiras de quaisquer natureza. Depois do Jimmy, a qualidade de vida da nossa família melhorou sensivelmente e posso dizer que formamos uma "dupla do barulho" a desbravar as adversidades que vamos encontrando no dia-a-dia.
EV: Quais são as evoluções sociais que a senhora entende serem mais prementes para o bem-estar de um deficiente visual no Brasil?
D: Hoje luto para transformar o "teletrabalho" uma realidade, para, por meio da tecnologia, tornar mais confortável a relação entre deficiente e empregador. Para o deficiente, não haveria o desgaste com a locomoção e, em contrapartida, o empregador não teria ônus de preparar um ambiente do trabalho adaptado, nem custear vale-transporte. Entretanto, sem uma legislação específica e com rara jurisprudência sobre o assunto, os empresários ainda não estão prontos para esse avanço.
EV: Que mensagem a senhora deixa para outros profissionais que também portam deficiência visual?
D: Temos que praticar o "jogo do contente", pelo qual sempre devemos agradecer pelo que restou ao invés de lamentar pelo que perdemos.
EV: A senhora deixa algum alerta à sociedade em geral?
D: Não podemos nos esquecer dos deficientes que não têm recursos financeiros para ter um simplório e defasado computador. Temos que lembrar dos interiores nem tão distantes das grandes capitais, onde não há qualquer infraestrutura para o que quer que seja. Dai é que percebemos o quão demagógico é o slogan governamental: "Brasil! Um País de todos". A luta é em prol de todos, pelo que despeço-me deixando aos leitores do Espaço Vital um exercício de cidadania, no sentido de que reflitam sobre o pensamento de Alexander Graham Bell: "Nunca ande pelo caminho traçado, pois ele conduz somente até onde os outros foram."
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